Por Dora Lorch*
Trabalho de psicólogo também é investigativo. Ora tentamos descobrir o que aconteceu na realidade, ora investigamos como a situação ocorreu na cabeça do paciente. Não se trata de julgar quem fez certo ou errado, mas de tentar compreender o que significou determinado episódio para o paciente. Em outros casos, é preciso ter certeza de que ele não está delirando. Quando se fala em abuso, estupro ou violência doméstica, a precisão dos relatos é de extrema importância. Como diz o ditado, quem conta um conto aumenta um ponto. Então, como saber o que realmente aconteceu? Angélica era uma adolescente adorável. Tinha problemas como qualquer adolescente. Um belo dia começou a se rebelar: não cumpria horários, chegava tarde da rua, não queria que os pais tivessem contato com seus amigos, não falava sobre o que fazia, nem sobre o que conversava. Até a escola ela deixou de lado. O quadro levava a crer que ela estava usando drogas. Mas o que seria? Álcool? Cigarro? Algo mais pesado? Os pais, afoitos, resolveram proibir a menina de sair. Para os adolescentes, contudo, o que é proibido parece ser mais interessante. E como era de se esperar, a menina fugiu. Voltou dias depois, quando a mãe já havia procurado ajuda do Conselho Tutelar. Voltou inteira, mas ninguém sabia ao certo onde ela tinha se metido. Dizia que tinha ficado na casa de amigos. Mas que amigos? Não tinha explicação. Foi então, para surpresa geral, que Angélica revelou que o padrasto tinha abusado dela. Não agora, mas 10 anos atrás. A menina contou que gostava do padrasto e da mãe, e que a única reclamação era sobre a rigidez na educação. Disse ainda que não queria ver o padrasto por um bom tempo. Por sua vez , o padrasto estava mortificado. Ele afirmava que tinha honra e que nunca teria feito nada deste tipo com a menina, que considerava como filha. E agora? O que fazer com esta história? Nós, do grupo de especialistas do projeto Florescer da Fábrica, ficamos pensando, ouvindo os pais, a menina. Analisando o que seria melhor para ela. O padrasto era mesmo carinhoso, mas carinho de pai, nada que despertasse suspeitas. Angélica inclusive retribuía o sentimento e o considerava como pai. E notou-se, durante o acompanhamento do caso, que nunca mais houve qualquer gesto que pudesse indicar abuso ou estupro. Assim o tratamento foi conduzido de forma a verificar se isso realmente aconteceu ou foi fantasia da cabeça da menina. De repente, durante as conversas com os pais, o padrasto fez uma revelação. Contou que no começo do casamento bebia muito, era agressivo e brigava muito com a esposa. Foi então que perguntei se ele se lembrava das brigas no dia seguinte, já que é comum nesses casos o esquecimento. Ele comentou que nem sempre se lembrava. Será que sofria de amnésia alcoólica? Há muito tempo o padrasto havia deixado a bebida, mas apuramos também que toda a família de origem era alcoolista. Nessa altura, começamos a vislumbrar uma possibilidade: o pai, embriagado, abusou da menina quando pequena, mas não se lembrava no dia seguinte. À época, Angélica não gostava daquilo, mas não sabia explicar o que estava acontecendo. Agora, soube que uma de suas amigas estava sendo abusada em casa. A conversa remexeu suas lembranças e a fez re-significar aqueles episódios antigos. Na verdade, a situação vivida por Angélica tornou-se concreta quando foi compreendida. Por isso, apesar de ter ocorrido tempos atrás, ela sentiu o abuso como se estivesse acontecendo naquele momento. E reagiu com violência e rebeldia. Essa era a sua maneira de dizer que estava triste e raivosa com o comportamento da família, que aos seus olhos não a amparou. Você deve querer saber o que se faz com pais como este? Felizmente não sou juíza, mas acho o tratamento psicológico indispensável neste caso. E o recomendo para a família como um todo e para cada um em particular. Há duas características importantes a serem consideradas. O padrasto parou o abuso sem a intervenção externa (ninguém descobriu, não houve denúncia para coibir o abuso etc), o que significa que ele pode se controlar. Também deixou de beber espontaneamente, percebendo que o alcoolismo estava afetando a vida familiar. A psicoterapia pode ajudá-lo a entender o que o levou a tal comportamento, permitindo que ele controle sua impulsividade e seja um pai melhor.
Boa semana.
Dora Lorch é psicóloga, mestre em psicologia e autora do livro "Como educar sem usar a violência" (Summus Editorial). Coordenadora do Projeto Florescer da Fábrica do Futuro, melhorando o relacionamento entre pais e filhos.
Artigo publicado originalmente no site da Comunicação Católica.