Maria Bernardete é professora aposentada da Udesc.
Foto: Pietra Simioni
A história dos cursos do Departamento de Música (DMU) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) se entrelaça com as vivências da professora Maria Bernardete Castelan Póvoas. Apaixonada por lecionar, ela acompanhou as evoluções desde a antiga Licenciatura Curta em Educação Artística, criada na década de 1970 na Faculdade Estadual de Educação, hoje Centro de Ciências Humanas e da Educação (Faed), até a consolidação do Centro de Artes, Design e Moda (Ceart), fundado há quatro décadas.
À época, então diretora-geral do curso de Educação Artística, foi a responsável pela coordenação e finalização do projeto. “Tudo ocorreu em época de difícil operacionalização (não era da computação), dos últimos meses do ano para aprovação ao início do semestre seguinte”, confessa a professora.
Pianista, doutora, mestra e bacharel em Música na área de Práticas Interpretativas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maria Bernardete é professora aposentada da Udesc e segue atuando como colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS). Desenvolve atividades de ensino, extensão e pesquisa sobre prática instrumental, repertório pianístico, música de câmara e música brasileira.
Ao longo da carreira participou de projetos que garantiram a continuidade da Licenciatura em Música, criaram o Bacharelado e ampliaram a formação musical na universidade. Ao acessar sua memória, Maria Bernardete também reconstrói a história do ensino de música na Udesc.
1. Como sua trajetória na Udesc se relaciona com o desenvolvimento dos cursos de Música?
Eu entrei na Udesc logo que cheguei da França (no final de 1974) onde realizei estudos depois do Bacharelado. Inicialmente trabalhei na secretaria e no coral, que já existia e onde algum movimento musical já havia começado, e, em seguida comecei a dar aulas de Harmonia, porque o curso de Licenciatura Curta em Educação Artística recém criado precisava de professores para se estruturar. Era necessário ter especialistas em música, mas praticamente não havia. Isso lá na Faed, porque o curso estava bem no início. Havia a professora Nanci Battistotti, cujo nome faço questão de mencionar, pois ela foi pioneira e idealizadora do curso de Educação Artística, junto com o professor Dimas Rosa. Assim, comecei a dar aulas de Harmonia. Pouco depois, antes de completar dois anos, a Licenciatura Curta foi transformada em Licenciatura Plena em Música. Eu fiz parte desse projeto. Santa Catarina foi um dos estados pioneiros neste considerado “avanço”.
2. Qual foi o maior desafio enfrentado nesse período inicial?
Os desafios foram muitos. Em vários momentos tivemos que afirmar: “a música é essencial na educação do indivíduo, nós somos importantes, nós somos necessários, a nossa existência tem valor”. Isso aconteceu várias vezes e até hoje ainda acontece, ocorre em diversos momentos e instâncias. Mas eu acho que um dos momentos mais marcantes foi talvez 1979 ou 1980, ocasião em que houve um forte movimento dentro da reitoria contra a continuidade dos cursos de Educação Artística, liderado por uma pessoa muito influente e que alegava, entre os argumentos, ser este um curso caro. De repente, a gente ficou sabendo pelo jornal que o edital dos vestibulares da Udesc tinha saído, mas, para nossa surpresa, não incluía os cursos de Artes. Eu era diretora na época e foi um choque. Imagine: não somente nós, professores, perderíamos nossos empregos, mas a educação, a sociedade perderia uma oportunidade enorme e única de ter um ensino formal da arte no Estado. Então, da noite para o dia resolvi escrever um documento, o mais conciso e convincente possível, que levei pessoalmente ao reitor, professor Lauro Zimmer. Era nossa última cartada.
Quando entrei na sala dele, fiquei em pé o tempo todo. Foi uma forma de me sentir mais segura, talvez me impor, pois a situação era muito tensa e tinha que ser resolvida rapidamente, para não correr o risco de a situação se estabelecer formalmente, legalmente. Li o documento, mesmo sendo interrompida várias vezes pelo telefone da Reitoria, mas consegui chegar até o final. Quando terminei, o reitor olhou para mim e disse: “Bernardete, eu advogo o teu pedido.” No dia seguinte, o edital com nossos cursos de Educação Artística foi oficialmente publicado.
Esse episódio foi histórico, porque poderia ter mudado completamente os rumos das coisas. Se o curso tivesse sido barrado ali, teríamos vivido um atraso enorme até chegar onde estamos hoje. A vida é assim, acontece com a gente ou sem a gente, mas naquele momento eu sabia da importância do que estava em jogo. Mais tarde veio a criação do Centro de Artes, fruto de muito trabalho. Ainda hoje, há quem olhe para nós como se não trouxéssemos lucro. Mas trazemos, sim.
3. A professora afirma que a arte traz lucros. De que forma isso acontece?
Eu falo mais pela música, mas os colegas de outras artes também concordam. O principal lucro da arte é a expressão, a questão estética expressiva para o ser humano. É o elemento primordial do desenvolvimento humanístico e intelectual, porque organiza o cérebro. Isso é comprovado por teorias da neurologia e da psicologia, que mostram como o estudo da música e das artes contribui para esse desenvolvimento.
Mesmo áreas como da moda e do design, que às vezes são vistas de forma diferente, também têm um lado artístico, também trabalham com a forma, com a arte. A sensibilidade para criar até um móvel, por exemplo, envolve levar em conta questões ergonômicas e de bem-estar humano. Tudo inclui sensibilidade e isso é expressão artística. Cada criação tem valor. Então, é isso, o Centro de Artes, Design e Moda está crescendo de maneira admirável e mostrando como todas essas áreas são essenciais.
4. Você poderia falar sobre alguma disciplina pioneira do curso?
Nosso curso de Música foi o primeiro no Brasil a ter uma disciplina de “Laboratório de Música e Mídia”. Posso dizer que foi uma ideia minha.
Na época, não tínhamos nenhum equipamento, então visitávamos estúdios, emissoras de televisão e pessoas que tinham estúdios em casa. Eu levava o pessoal para conhecer esses espaços, inclusive fora de Florianópolis, em São José.
Era uma disciplina divertida e musicalmente muito produtiva. Os alunos traziam novidades, pesquisavam bastante, e isso abriu caminhos para o que temos hoje, como o nosso laboratório, as disciplinas de composição e tantas outras. Nosso curso é muito rico.
5. A partir de que momento nasceu o bacharelado em Música?
Muitos alunos que vinham fazer a Licenciatura em Música queriam, na verdade, estudar instrumentos, algo mais específico. Muitas universidades brasileiras já ofereciam o curso de bacharelado, então trabalhamos nesse projeto para instituir o nosso. Comecei o projeto junto com a professora Nanci e outros colegas, como os professores Carlos Besen, Rute Gebler e Nilva Besem Hillesheim.
6. Tem alguma história importante que gostaria de compartilhar sobre o desenvolvimento do curso de música?
O curso de Música – opção violino foi extinto por um tempo. Também tivemos vozes contrárias à reativação do curso no próprio Departamento de Música. Para fortalecer o projeto de retomada, organizei uma orquestra com os poucos ex-alunos dos extintos bacharelado em violino e vários Escola de Música da Udesc, e um survey em escolas de música do Estado de Santa Catarina para reunir interessados em estudar cordas, como violino, viola e violoncelo, incluindo alunos do segundo grau [antigo Ensino Médio] e da comunidade.
Conseguimos mais de 30 ou 40 inscrições, o que serviu como argumento para justificar a reativação do curso, além da Orquestra da Udesc. O projeto passou. Fui então falar com o reitor da época, professor Rogério Braz, conseguimos abrir o concurso e o professor João Titon assumiu. Depois entrou o professor Luiz Henrique Fiaminghi, e o curso finalmente voltou com tudo. Faço questão de manifestar que as atividades extintas ocorreram durante meu afastamento para cursar o mestrado no Rio Grande do Sul, o que muito me impactou, no sentido de ver um trabalho em vias de “desmoronar” para mim e muitos colegas. Foram muitas as causas dos acontecimentos…
7. Qual a importância de implementar, em Santa Catarina, primeiro a licenciatura e depois o bacharelado em Música?
A importância desses cursos vem justamente da necessidade; era uma demanda do estado. O primeiro curso de bacharelado e a primeira Licenciatura em Música de Santa Catarina foram criados aqui na Udesc. Então, foi importante porque ajudou a suprir as necessidades das orquestras, formando músicos em excelente nível. Com relação ao piano, temos pianistas que construíram carreira aqui e também no exterior. Alguns seguiram como solistas, outros se dedicaram à música de câmara ou ao ensino em escolas. Muitos alunos de piano dão aulas, formam novos estudantes, trabalham como correpetidores acompanhando cantores e grupos. Alguns abriram seus próprios estúdios e encontraram espaços de trabalho bastante relevantes, tanto em Florianópolis quanto fora da capital.
A importância também está no impacto da música para a educação. Há muitos estudos científicos que comprovam como a prática musical estimula o cérebro humano. Li recentemente artigos que falam sobre a importância de as crianças ouvirem música e conviverem com a música. A musicoterapia, por exemplo, auxilia no desenvolvimento intelectual, na orientação e compreensão de sintomas e problemas de doenças de comportamento e deficiências em diferentes níveis.
Além disso, a música também lida com a matemática. A gente trabalha a proporção, que é o valor das notas, o tempo, o ritmo. Essa lógica pode ser rígida ou flexível, e aprender a lidar com ela é um ganho enorme, tanto estético quanto sensível. Isso dá ao ser humano mais flexibilidade de pensamento, abre espaço para mudanças e ajuda a evitar posturas radicais, que considero prejudiciais. Então, eu acho que a música desenvolve todos esses aspectos.
8. De que forma o curso contribuiu, ao longo dos anos, para a formação de professores e para o cenário artístico catarinense?
A licenciatura já começou a contribuir logo nas primeiras turmas. Esses alunos foram ocupando espaços nas escolas de Santa Catarina, no ensino básico. Claro que o espaço destinado à música dentro do currículo educacional sempre foi pequeno, mas, mesmo assim os professores formados aqui passaram a atuar conforme as possibilidades. Isso acontece até hoje. Lembro que, já nas primeiras turmas, nossos egressos foram dar aulas no Colégio de Aplicação da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e muitos outros de Florianópolis e interior do Estado.
Muitos desses formados seguiram para a pós-graduação, começando pela especialização, já que ainda não tínhamos mestrado. Depois, alguns foram cursar o mestrado e o doutorado, atuando em todo o estado e fora dele. Há ex-alunos que seguiram carreira no exterior, como na Alemanha, Áustria e Inglaterra. Outros escolheram a carreira solo ou ingressaram em orquestras. Todos conseguiram encontrar seu espaço, seja como músicos profissionais, como professores ou conciliando as duas funções.
9. De que forma o curso participa da vida cultural da comunidade, por meio dos projetos de extensão?
Eu digo que é tácito porque os cursos sempre foram abertos à comunidade. Então, basta uma criança ou adolescente participar, mesmo que por pouco tempo, para que já haja um ganho. Ainda que depois não queira mais continuar, a experiência deixa uma profunda influência positiva. Além disso, há os projetos de concertos que vão até às comunidades, às escolas ou saem de Florianópolis. Temos exemplos como o Quarteto de Cordas, a Big Band, que participa de eventos, e até festivais. O Coral da Udesc também sempre foi muito atuante, sempre teve um papel importante na divulgação da música e do repertório em Santa Catarina e até fora do estado, participando de festivais. Agora também existe o Madrigal, que é maravilhoso.
Por isso, acredito que a extensão tem um papel fundamental na divulgação dos diferentes fenômenos artísticos. Levar a música para lugares onde ela não está facilmente presente, mostrar que ela existe, que ela é maravilhosa, em lugares onde não há manifestação será sempre uma de nossas funções enquanto artistas e professores. Mas a extensão não deve ser apenas sobre levar a arte, e sim também abrir mais espaços no sentido de formação e de novas oportunidades. Participar da Big Band, do Coral ou de outros grupos já é, por si só, um processo de formação. O Programa de extensão Pianíssimo, coordenado pelo professor Luís Cláudio, é um exemplo, crianças vêm ter aulas de piano aqui. No entanto, penso que poderia haver ainda mais programas nesse sentido, ampliando as oportunidades de formação. Mas tem também os Programas Piano em Foco que comecei em 2004, Ponteio, Orquestra e, mais recentemente, a Camerata de Violões, entre outros.
Para os 40 anos do Ceart, meu carinho e votos de que continue e evolua em seu foco na Arte e Educação com níveis e reverberações construtivas, somente. Meu respeito aos colegas de tantas forças e experiências.
Texto produzido para a 9° edição da revista Hallceart pela estagiária Pietra Simioni.
A revista está em produção e será publicada em breve.
Núcleo de Comunicação Udesc Ceart
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