Lina Magalhães venceu o Prêmio Capes de Teses 2025 na área de Planejamento Urbano e Regional
Pesquisa propõe revisão das políticas migratórias.
Imagem: Divulgação
Diariamente, Fátima, 60 anos, atravessa a fronteira de Ciudad del Este até Foz do Iguaçu. Ao chegar na principal rua comercial da cidade, a Avenida Brasil, abre sua mesita para vender frutas e verduras, ao lado de outras mulheres paraguaias que comercializam produtos diversos. Apesar de repetir essa rotina há mais de qua- renta anos, Fátima nunca conseguiu um documento para comprovar o trabalho rea lizado no país.
“Políticas públicas ainda têm uma lógica muito masculina do migrante trabalhador que possui contrato formal”, afirma
Lina Paula Machado Magalhães, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental (PPGPlan), do Centro de Ciências Humanas e da Educação (Faed), da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). “Ficam de fora diversas subjetividades que trabalham na fronteira e a constroem cotidianamente, mas que são invisibilizadas porque não têm carteira de trabalho”.
Fátima é o pseudônimo de uma das mulheres paraguaias que Lina entrevistou para a sua
tese de doutorado sobre migrações na Tríplice Fronteira do Paraná. O estudo, defendido em 2024 sob orientação da prof essora
Gláucia de Oliveira Assis (Udesc) e co-orientação da professora
Carmen Gregorio Gil (Universidade de Granada, Espanha), concentrou-se nos fluxos entre Ciudad del Este e Foz do Iguaçu. “É uma fronteira muito feminizada, de mulheres que estão ali atravessando com suas famílias”, ressalta a autora. Lina entrevistou migrantes residentes tanto no Brasil quanto no Paraguai.
Apesar do grande número de trabalhadoras na região, o estudo revela que as mulheres enfrentam mais barreiras para acessar políticas públicas de proteção social. A maioria encontra-se em situação de irregularidade documental e não possui carteira de trânsito fronteiriço ou comprovante de moradia. Para obtê-las, é preciso manter contratos formais de trabalho.
Vencedor do Prêmio Capes de Tese 2025 na área de planejamento urbano, o estudo inova ao propor uma revisão das políticas públicas sobre territórios fronteiriços. Dados da pesquisa indicam a necessidade de incorporar perspectivas de gênero transnacionais para facilitar a regularização cidadã de mulheres que atuam, majoritariamente, no mercado informal. Nesse sentido, Lina defende que gestores devem pensar as fronteiras para além da lógica de estado-nação, ultrapassando seus limites geográficos.
Abandono masculino sobrecarrega mulheres migrantes
A história de Fátima assemelha-se a de tantas outras mulheres paraguaias cuja sobrecarga de trabalho inicia desde a infância. Aos seis anos, ajudava a mãe tanto na lavoura quanto em casa, cuidando dos 12 irmãos. Após migrar para a cidade, passou a auxiliá-la no comércio de rua, em Foz do Iguaçu. Atualmente, sustenta sozinha a casa sem o apoio do pai dos filhos.
Para as mulheres migrantes, a fronteira representa uma oportunidade. É o modo que encontraram para acessar políticas públicas (ausentes ou pouco efetivas no país de origem), obter algum nível de autonomia financeira (já que algumas foram proibidas de trabalhar pelos próprios maridos) e até mesmo sair de situações de violência doméstica.
A ausência dos homens nas tarefas de cuidado da casa e na relação com as próprias parceiras carrega marcas históricas da Guerra do Paraguai. Além de arruinar a economia do país, o conflito dizimou cerca de 90% da população masculina paraguaia com mais de 20 anos,
afirmam historiadores.
Coube às mulheres a responsabilidade de reconstruir o país. Lina explica que o estereótipo da
kuña guapa (mulher trabalhadora, em guarani) sobrecarregou a vida delas no pós-guerra. “A divisão de tarefas do homem provedor e da mulher reprodutora não se aplica ao contexto paraguaio. Elas sempre acumularam trabalhos”.
Políticas migratórias não englobam trabalho de cuidado
Por trás da imagem romântica da mulher paraguaia guerreira, há também ausência de estado. Segundo a pesquisa de Lina, Ciudad del Este conta com poucas creches públicas para uma população de mais de 300 mil habitantes. Também são escassos os locais de acolhimento a vítimas de violência doméstica.
Neste contexto, a migração das mulheres para as fronteiras representa a construção de um novo lar, livre de abusos físicos e psicológicos.
“Elas foram muito valentes de romper com o abandono sintomático dos homens”, pontua Lina. “Os maridos não apoiavam financeiramente na casa. Após abandoná-las, voltavam bêbados ou com crise de ciúmes. A migração foi importante para cortar esse vínculo”.
Como principal descoberta, o estudo propõe que gestores públicos construam o planejamento urbano das fronteiras considerando uma política transnacional do cuidado. Afinal, mesmo que migrem sob a expectativa de acesso aos direitos básicos (como saúde e educação para os filhos), muitas das mulheres paraguaias ainda enfrentam barreiras para a regularização cidadã. Um dos principais entraves é o não reconhecimento de atividades do mercado informal, como o serviço doméstico.
“Lina constrói uma tese que questiona como o trabalho de cuidado, aparentemente feito no privado, envolve questões de política pública”, assinala a professora Gláucia, orientadora da tese. “Ganhar esse prêmio é o reconhecimento a um tema contemporâneo para o qual nós precisamos dar uma resposta. Não só no Brasil, mas em todos os países”.
Observatório das Migrações de SC: trabalho coletivo com impacto social
Lina também credita a premiação ao trabalho coletivo desenvolvido nos grupos de pesquisa da Udesc. “A universidade pública te proporciona muitos desses espaços de troca, discussão e aprendizagem. Eu me formei neles. Tudo o que trago na tese é fruto de diálogos constantes com vários colegas”.
Um desses espaços é o
Observatório das Migrações de SC, que funciona junto ao
Laboratório de Gênero e Família (sala 310, 3º andar, Udesc Faed). Sob coordenação da professora Gláucia, o Observatório surge como projeto de pesquisa para entender os fluxos tantos dos catarinenses que vão para o exterior, quanto dos novos migrantes internacionais que chegaram no século XXI ao estado. O grupo é aberto a qualquer pessoa interessada no tema das migrações, com reunião mensal. Recentemente, lançou o e-book “Atlas temático das migrações internacionais em Santa Catarina no século XX”, disponível gratuitamente aqui.
Ao longo dos anos, o Observatório ampliou sua participação na comunidade através de projetos de extensão com impacto social. Em parceria com a Pastoral do Migrante - Missão Scalabrini e a Círculos de Hospitalidade, oferece
curso gratuito de português online para migrantes, com foco na naturalização brasileira.
Entre outras frentes de trabalho, Gláucia destaca a oferta de cursos para capacitação de agentes públicos sobre imigração e diversidade. E a participação do Observatório junto ao
Tribunal Regional do Trabalho no programa de enfrentamento ao trabalho escravo, tráfico de pessoas e proteção ao trabalho do migrante, representando a Udesc.
“O que fazemos não é filantropia ou caridade. É trabalho em defesa dos direitos”, ressalta Gláucia. “E acho que a gente faz a diferença na vida dos migrantes, seja com nossas pesquisas ou projetos de extensão que combatem o preconceito, a discriminação, e possibilitam acesso à regularização migratória”.
Lina segue agora no estágio de pós-doutorado, sob desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Udesc. O estudo é um desdobramento de sua tese de doutorado e discute como a expropriação territorial está associada à violência sobre os corpos das mulheres.
Contate as pesquisadoras
Lina Paula Machado Magalhães é doutora em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental (Udesc) e em Estudos das Mulheres, Discursos e Práticas de Gênero (Universidade de Granado, Espanha). Atua nos seguintes temas: planejamento urbano, estudos de gênero, migrações.
E-mail: linamagalhaes7@gmail.com
Gláucia de Oliveira Assis é doutora em Ciências Sociais (Unicamp), com pós-doutorado pela mesma instituição e pela Universidade de Lisboa. Atua nos seguintes temas: estudos de população, demografia, migrações contemporâneas, emigrantes brasileiras/os, relações de gênero e migrações internacionais.
E-mail: galssis@gmail.com
Este texto integra o projeto
Udesc+Ciência, produzido pela Secretaria de Comunicação da Udesc com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (
Fapesc).
Assessoria de Comunicação da Udesc
Jornalista Dairan Paul
E-mail: comunicacao@udesc.br
Telefone: (48) 3664-8006